sábado, 14 de novembro de 2009

sexta-feira, 6 de março de 2009

Cena 1

Num tabuleiro de xadrez, a Rainha fuma seu cigarro. O rei lê um livro grosso. Os dois são brancos e estão sozinhos em cena, distanciados por algumas casas. Vemos apenas parte do tabuleiro. O Rei está mais ao fundo e à direita do palco que a Rainha. Em pé, ele mostra sofrer de dores na perna.

Rainha:
Você vai ter mesmo que mudar de lugar.

O Rei interrompe a leitura, olha para a Rainha. Volta novamente a sua leitura.

Rainha:
Os Peões vieram informar. Os que sobraram pelo menos... O Rei deve mesmo sair de onde está.

O Rei vira uma página de seu livro. Não dá importância para o que a Rainha fala.

Rainha:
Não me pergunte o porquê disso tudo porque eu também não sei. Acho uma imensa bobagem ficar mexendo no Rei quando, na verdade, não há estratégia alguma. Mas já viu como caem os nossos? Na ânsia de proteger Sua Majestade, esquecem de protegerem-se a si mesmos. E aí, vão caindo um a um. Quem quer proteger o outro, acaba sempre caindo e perdendo a batalha. Fatal!! (suspira) É uma boa decisão. O Rei deve mesmo sair do seu lugar.

A Rainha olha novamente para o Rei que continua lendo seu livro.

Rainha:
Outro dia, o meu Bispo esteve aqui. Perguntei a ele como estavam as coisas naqueles lados do tabuleiro aonde a Rainha só vai quando já não há alternativa. Sabe o que ele me contou? Que as duas Torres já foram tomadas e só nos resta um Cavalo. Um Cavalo!! Você já viu isso?? Fico, às vezes, pensando onde é que vamos com esses ataques inúteis que só nos fazem perder o que temos. Sua Eminência estava apavorado! E como não haveria de estar? Alguém como ele, na posição em que se encontra, ficar com a responsabilidade de nos defender tanto quanto os pobres Peões?! Um absurdo. Não que seja indigno nos defender, mas, quando um Bispo tem que fazer isso, é porque os plebeus mostraram porque são plebeus. E agora, tudo isso... Você ter que mudar de lugar...

O Rei vira outra página do seu livro. Permanece sem dar importância para o que diz a Rainha. Ela tira um cinzeiro de dentro de um bolso e apaga seu cigarro. Retoca a maquiagem.

Rainha:
O Bispo me disse também que o cura do outro lado do tabuleiro, o seu Bispo, está muito próximo da frente de batalha. Disse-me ele que o clero está correndo perigo por causa de fragilidade que ele tem e que não devíamos confiar tanto nele assim. Que o clero não deve ficar tão próximo dos inimigos. Que ele é devagar e sem cabeça para esses embates. O que você acha? Eu acho muito feio um Bispo ficar falando mal do outro Bispo. Que falta de compostura! Não adianta em nada para nosso projeto. Em nada!

O Rei guarda o livro que estava lendo. Olha para a Rainha.

Rainha:
Eu sei o que você está pensando: eu já deveria estar acostumada. O poder é assim mesmo. Você não deve confiar em ninguém e, ao mesmo tempo, dar ouvidos a todo mundo. Que temos que ter a paciência de escutar o que todos nos dizem, mas sempre fazer ouvidos de cano em que as fofocas entram por um lado e saem pelo outro. É normal mesmo querer ser ouvido, querer atenção. Eu até acho que não fazem isso por mal, só querem ser úteis... Mas tenho pra mim que não deveriam nos ajudar tentando diminuir os outros. Por que então não se engrandecem a si mesmos ao invés de ficar querendo se sobrepor aos outros? Isso eu não perdôo. Não tem desculpa! (olha para o Rei) Você já decidiu para onde vai?

O Rei olha pra os outros lados e para frente.

Rainha:
É mesmo uma tarefa difícil ser Rei. Veja só... Todos lutando, fazendo de tudo para proteger você. Uma responsabilidade enorme. Só de pensar já me dá dor nos nervos. Imagina só!? Com toda a certeza, eu enlouqueceria. São tantas as tarefas, tantos a ouvir, tanto a fazer. E, ao mesmo tempo, nada. Você está de mãos atadas. Agora é um exemplo. Você precisa mudar de lugar, nos informa a frente. É um pequeno gesto. Qualquer dos Peões faz isso a toda hora. Mas quando o Rei muda, é todo o jogo que se modifica. Na minha opinião, quando o Rei se mexe é porque está na cara que não temos mais muitas alternativas e nossos dias estão contados. Veja só, é uma coisa óbvia! Você é a peça mais importante. Todos dependemos de você.

Rei:
Apenas eu dependo de mim.

Rainha:
Eu mesma dizia a pouco que sempre perdemos tudo quando ficamos apenas tentando defender os outros ao invés de lutar a favor de nós mesmos. Mas não adianta... É outra coisa que faz parte da nossa personalidade: pensar que o outro é mais importante que nós. Eu acho isso tudo muito bom porque nos dá uma sensação de humildade, de caridade, entende? Mas são sentimentos que não combinam em nada com a batalha que travamos, com a que vivemos desde quando nascemos. E você me conhece e sabe que eu gostaria muito de chorar por cada Peão que cai. E agora as nossas Torres... (lamenta) As duas!!

Rei:
Você chora porque elas protegiam você.

Rainha:
Sim... É verdade... Você está certo novamente. Elas me protegiam e eu tenho medo de perder minha coroa.

Rei:
Você nunca perderá a coroa. Perderá a vida, mas nunca a coroa.

Rainha:
Mas elas protegiam os Peões também... Todos eles. E também os Bispos, os Cavalos e nós. Nós!! Mas não estou triste só por causa disso. Lamento por elas terem sucumbido porque gostava delas. Elas eram lindas!! Daqui nós as víamos, lembra? E achava muito eficiente a rapidez com que andavam. Eram sóbrias, ágeis. Tinham ar imponente. Você não pode negar isso! Eu, às vezes, até as invejava. Estavam em rápidos toques lá na frente de ataque e, depois, aqui novamente. Perto de você. É também por isso que fico chateada. Resta-nos pouco.

Rei:
Não há como restar-nos pouco. Ou nos resta tudo ou não nos resta mais nada.

Silêncio. A Rainha enxuga as lágrimas, retoca novamente a maquiagem. Arruma sua roupa. Retoma seu olhar de superioridade do início da cena.

Rainha:
Eu também, num instante, posso estar lá e posso estar aqui. Sou a única que posso fazer o que quiser. Por isso, sou a Rainha. Invejava, sim, o jeito imponente das Torres e não tenho vergonha de dizer que dependia delas. Pois está na hora de eu retomar meu jeito imponente e aristocrático. Sou a Rainha desse jogo! Mas, ao mesmo tempo, sinto que valho tanto quanto um Peão, pois os inimigos se aproximam. Posso andar como quero, ir para onde tenho vontade, mas, se faço isso, ponho em risco todos, inclusive você. E dependo de você. E dependíamos delas, das Torres.

Rei:
Apenas eu dependo de mim mesmo.

Rainha:
Ouça, Majestade: você deve mudar de lugar.

O Rei pega o livro novamente e começa a ler. A Rainha tira de dentro da coroa uma almofadinha.

Rainha:
Lembro bem do início, quando eu ainda estava ao seu lado e, à frente de nós, só havia a esperança. Como sempre, nos olhávamos e pedíamos a Deus que nos desse a graça de terminar ainda todos juntos. Nas minhas conversas com o Bispo, sempre comentávamos sobre o brilho dos Cavalos e do quanto eles eram valorosos para nós. Pedíamos com o coração sincero que nada lhes acontecesse. Da mesma forma para com as Torres. No canto, velando por todos nós. Eu, porém, tinha um carinho especial pelos meus Peões. Aqueles que ficavam mais próximos a mim. Conhecia-os pelo nome, sabia quem eram os seus amigos e o que planejavam fazer. Nós tínhamos um plano, lembra? Éramos jovens e tínhamos nossas idéias. Sabíamos o que queríamos! E nossa vitória não estava no fim de tudo. Nossa vitória era o dia a dia, os embates, os pequenos gestos que não matavam ninguém, que não agrediam os sonhos e, principalmente, que não arriscavam nada. A única coisa que tínhamos era a certeza de que seríamos muito felizes.
Ainda de livro aberto, o Rei olha para frente, atento ao que diz a Rainha.

Rainha (sentando-se aristocraticamente):
Mas nossos Peões foram avançando e, com eles, os dias. Se nada tivéssemos feito, na hipótese de que isso pudesse realmente ter acontecido, será que hoje estaríamos velhos? Se alguém não se levantar o dia inteiro da cama, o dia também lhe passa? Uma vez ouvi a história de uma menina que dormiu quando ainda era mocinha. E o seu sono foi de cem anos. Quando, um século depois, um príncipe lhe despertou, ela ainda era a mocinha de antes. A vida para ela não havia passado. Para nós não teria sido assim? Penso que somos nós, não o tempo, que cavamos nossas rugas. Ao sairmos do nosso lugar, ao permitir que nosso nome ou mesmo a sutil lembrança de nossa existência seja levada para longe de nós, do nosso controle, promovemos nosso envelhecimento, nosso fim.

Tira do seu vestido um colar com uma foto no pingente.

Rainha:
Sim... É poético, lírico até dizer que o envelhecimento não é o fim. Mas é. Não há como fugir. E é o fim porque não podemos ficar agindo por todo sempre. Alguns fazem mais, outros menos, mas ninguém faz tudo! E é pretensão nossa achar que podemos fazer tudo. E como isso nunca nos acontecerá, teremos um fim. É como se, ao nascer, tivéssemos um número xis de ações, de passos para dar. Quando demos esses passos, chega o nosso fim. Fácil. Fatal. E, agora, chegou a sua vez de dar o primeiro passo.

Rei:
Nessa vida, o Rei é quem menos passos dá.

Rainha:
Triste vida a de um Rei. Posso imaginar...

Rei:
No entanto, é o que tem vida mais longa.

Rainha:
Porque atrasa os passos que deve dar. E faz bem! Quanto menos caminharmos para o fim, mais longe o fim ficará.

Rei:
Então eu não devo mudar de lugar.

Rainha:
É egoísmo não fazer. E egoísta você não será. Mudará de lugar. Conselho dos Peões!

Rei:
Burrice, então, caminhar. Se mudo de lugar, aproximo-me da morte.

Rainha:
Todos dependemos de você.


Rei (rindo sarcasticamente):
E, se eu morro, todos morrem. Você me põe em xeque: se ando, aproximo-me da morte. Se fico parado, a morte se aproxima de mim.

Rainha:
A morte de aproxima inevitavelmente de todos nós. Somos incapazes de fazer algo contra isso.

Rei:
Não se eu ficar parado. Não se eu não levantar da cama. Não se eu dormir. Pelo menos, segundo você e sua história.

A Rainha se levanta e o Rei volta a sua leitura.

Rainha:
Conservo nesse pingente a foto de quando me movimentei por você. Sair do posto Real não é tarefa fácil. Mas, naquele momento, era necessário ou colocaria você em risco. Enfrentei também minha juventude e fiz minha aposta. Hoje, concluo que os novos ares me fizeram bem. Aqui estou mais próxima dos Peões e do Bispo e consigo ter, com mais rapidez, informações sobre a frente. E ainda estou ao seu lado. É normal olharmos as mudanças com um olhar de fatalidade, de condolências... Mas, tomada a decisão, a vida se modifica e se modifica novamente de forma que tudo se encaixa de novo. Acredite: nós nos acostumamos com tudo e percebemos que foi bom mudar. Tenho novos pontos de vista. Sou mais útil onde estou por mais que tenha saudade do seu toque, do seu cheiro. Você me fala que depende apenas de você e que ninguém mais precisa de ti além de ti mesmo, mas, Majestade, acho que não deveria pensar assim. A vida nos ensina que dependemos uns dos outros e que é bom conviver com essas correntes. Eu sinto muito não estar ao seu lado.

Rei:
Ou você matava ou seria morta. Saiu daqui porque não tinha outra opção. (friamente) Será que é também parte da nossa personalidade disfarçar a realidade para poder engoli-la diariamente? Se for, quero sair desse jogo.

Rainha:
Você não poderia fazer isso, ainda que realmente quisesse.

Rei (rindo):
Nem mesmo você. Você, minha Rainha, que diz poder fazer tudo. Temos esse jogo para jogar. E não sei até que ponto é bom que vençamos. Todos morreremos. Não há dúvida.

Rainha:
Penso que não. Uns podem se salvar. Acredito nisso de todo o coração.

Rei:
E permanecer vivos após o fim? Você mesmo disse que estamos acorrentados e necessitamos da convivência uns dos outros. Que convivência teremos? Poucos certamente restarão. O mal da velhice não é a proximidade do fim. É que sempre nos restam poucos que conhecem nossos apelidos de infância, as músicas de nossa juventude.

Rainha:
Há jovens que podem aprender... E velhos que podem ensinar.

Rei:
Vamos então falar de poesia. Sim, podemos ensinar, podemos lhes fazer imaginar o que foi o início do jogo, mas nenhum deles esteve conosco quando demos o primeiro beijo, quando recebemos nosso primeiro salário. Isso é um jogo. Todos os que terminarem conosco, amigos ou inimigos, perderão suas vidas com o fim da batalha, seja quem for o vencedor. As memórias que temos de quando você estava ao meu lado não importam e nem garantem em nada nossa sobrevivência, quanto menos nossa vitória.

Rainha:
Sua sobrevivência é nossa vitória!

Rei:
Admiro em você a vontade de vencer. Velhos Reis e Rainhas tinham essa obstinação. Faço parte da nova aristocracia: a que quer apenas sobreviver.

Rainha:
Pois eu repito: sua sobrevivência é nossa vitória! A morte do Rei é a horrível derrota.

Rei:
Achei que falávamos apenas de morte.

Rainha:
Sinto perguntar, mas, que graça tem a vida de um derrotado?

Rei:
Diga-me, então, que graça tem a vida de um vitorioso?

Rainha:
O derrotado percebe que tudo o que fez não lhe valeu de nada. Que, infelizmente, empregou toda a vida por uma causa que se perdeu. O vitorioso, não. Ele é feliz porque recebe a recompensa.

Rei:
Poderia me dizer que recompensa teremos?

Rainha:
Só sei o que o Bispo me fala.

Rei:
Ah... O que o Bispo lhe fala... Sei...

Rainha:
Fala que teremos uma recompensa. Isso acaso não é bom? Pois, desde já, devemos estar felizes por estarmos fazendo de tudo para vencer. O que o seu Bispo lhe fala sobre o futuro?

Rei:
Não procuro falar com meu Bispo sobre o futuro. Aliás, não falo com ninguém sobre algo tão absurdo quanto o que está por vir. Mas, sobre o presente, ele me diz quase o mesmo que o teu: que devemos fazer a nossa parte e dormirmos sempre com cabeça tranqüila.

Rainha:
Adormecer com a cabeça tranqüila significa ter a certeza de que fizemos tudo pela vitória do nosso povo.

Rei:
Dormir com a cabeça tranqüila significa ter a certeza de que estou dormindo. Nada mais...

Rainha:
Isso é egoísmo. Se sentisse isso, estaria só está pensando em si.

Rei:
A morte do Rei é o fim do jogo e a derrota. O Rei pode e deve ser egoísta. E eu sou o Rei aqui.

Rainha:
Sim. Você tem razão. O Rei deve pensar, antes de tudo, em sobreviver. Mas saiba que está lutando com sua sobrevivência para a vitória de seu povo. E eu estou ao seu lado!

Rei:
Após o fim do jogo, só o que sei é que não temos mais sentido. Por que nos dedicarmos a essa imbecilidade de futuro? Aqui nosso objetivo é vencer. Você fala de depois do fim do jogo. O que pode nos restar?

Rainha (feliz):
Comemorarmos.

Rei:
E quanto aos outros? Os “derrotados”...

Rainha:
Sem Rei, lhes resta pouco: lamentar. Que mais poderão fazer?

Rei (olhando no fundo dos olhos da Rainha):
E você, o que acha disso?

Rainha:
O que eu acho? Não há o que achar... A vida é assim... Sempre foi... Quem ganha se alegra e quem perde chora. Há algo mais óbvio?

Rei:
A obviedade, então, está no egoísmo? Pois eu, então, sou egoísta e óbvio. Bela definição para um Rei. Quisera ter também eficiência. Minha querida e tola Rainha, todos estamos jogando. Ninguém está escrevendo contos de fadas por aqui. Se estivéssemos, tu serias minha “Rainha de Copas”. “Cortem-lhe a cabeça! Cortem-lhe a cabeça!” (ri) Posso te perguntar por que todos não nos alegramos no fim desta batalha?

Rainha:
Porque lutamos uns contra os outros. E você precisa mudar de lugar para a sua sobrevivência e a vitória de todos nós.

Rei:
E derrota deles, claro...

Rainha:
Há apenas dois povos lutando aqui. Um deles ganhará e o outro perderá.

Rei:
Prefiro um onde todos ganhem. (debocha) “Cortem-lhe a cabeça!”

Rainha (abalada sentimentalmente):
O que você prefere? Sinto muito, mas... Um Rei deve preferir o que o povo prefere. Seus sentimentos particulares não interessam nesse momento. Lembre-se de nosso projeto!

Silêncio. O Rei volta a ler o seu livro. A Rainha acende um cigarro.

Rainha:
Talvez você pense que foi o meu Bispo que disse que você deveria mudar de lugar, mas não foi. A pouco, um Peão esteve perto de mim e comentou que ouviu isso no front. E disse também que estamos prestes a perder o último cavalo. É pelos Peões que eu sei o que está acontecendo, não pelo meu Bispo. Como Rainha, eu preciso tomar decisões e é aí que entra os conselhos da Igreja. Não sei o quanto você tem se preocupado com o embate, mas nossa situação não é das melhores. Acredite em mim! Por isso...

Rei:
Ah... A simplicidade... Eu, Majestade, tenho me preocupado apenas com a minha vida.

Rainha:
Ótimo! Então mudará de lugar.

Rei:
Mas até que deveria me preocupar mais... Mas acabo sempre percebendo que não vale a pena tanta dor de cabeça. Estou lendo esse livro e gostando muito, sabe? Você deveria ler algo também pra se distrair. Pois vou continuar lendo ele até o momento em que ele não me agrade mais.

Rainha:
E só seguirá meus conselhos quando este lugar não te agradar mais? É isso que quer dizer?

Rei (curvando-se):
Exato, Majestade.

Rainha (desanimada):
Fácil ser Rei...

Rei (ri):
Agora a pouco você dizia que era difícil...

Rainha:
Fácil ser um Rei como você. (displicente) Há reis e reis... E você me força a pensar que...

Rei:
Neste jogo só há dois. Eu e o Rei Inimigo. Se não gosta de mim, alie-se ao outro!

Rainha:
Jamais serei traidora! Ficarei onde estou. E estou com você e o nosso povo!

Rei:
Muito obrigado! Muito obrigado!! Faz isso para o seu bem. (encara a Rainha com olhar de “papai bravo” e, depois, ri) Senão, não ganhará a recompensa!

Rainha:
Se eu morrer, o jogo continua e ainda teremos esperanças. Não me importo em morrer pra salvar você. Já ouvi muitas histórias de Rainhas que morreram no início do jogo e mesmo assim, seus povos venceram. Ficarei satisfeita se isso acontecer.

Rei:
Triste a vida de um Rei sem sua Rainha. Se bem que as poesias tristes são minhas preferidas...

Rainha:
Você está sendo sarcástico. E, sinceramente, muito desagradável.

Rei:
Olha como fala, ou eu não mudo de lugar!

Rainha:
Pois então não mude! Vou dormir tranqüila, o que como você disse, é ter a certeza de que estou fazendo a minha parte.

Rei:
E para onde você acha que eu devo ir?

Rainha:
Os dois Bispos são também bons soldados. Salvaremos o último cavalo e faremos um bom muro para proteger Sua Majestade.

Rei:
E quanto a você?

Rainha:
Agradeço sua preocupação, mas sou mais importante aqui.

Rei:
Admiro a sua coragem. Quantos anos tem?

Rainha:
Você está se sentindo bem? Você sabe, Majestade, que todos temos a mesma idade nesse jogo. Ela não nos importa.

Rei:
É mesmo... Obrigado por me lembrar, havia me esquecido desse detalhe de nossas personalidades frias e opacas. (suspira) Mas algo me martela dia e noite na cabeça: por que será que uns são Peões, outros são Cavalos e outros Reis?

Rainha:
Majestade, existem oito Peões, dois Cavalos, dois Bispos e duas Torres. Já não somos mais todo esse exército, mas...

Rei:
E apenas uma Rainha e um Rei.

Rainha:
Você fala como se não soubesse como se joga nessa vida. Suas perguntas me preocupam. É a sua perna que lhe afeta os pensamentos, não é?

Rei:
Me responda: se você anda mais e pode mais que eu, por que é que se eu morro, termina o jogo? Quando o Rei morre, a Rainha deveria assumir... Ninguém estuda história por aqui?

Rainha:
Quando o Rei morre, a Rainha assume apenas por um tempo. A coroa vai mesmo é para o príncipe regente. Como não há príncipe regente, o jogo termina. Assim é que é. Assim sempre foi e queremos que sempre seja. Agora, meu Rei, se me dá licença, antes que isso aconteça, vou mandar uma mensagem para o meu Bispo pedindo que vá para junto do seu. Avisarei que Sua Majestade O Rei irá para lá e concederá a honra de ser protegido por eles.

A Rainha tira um papel do bolso e começa a escrever uma mensagem.

Rei:
O que está fazendo? Então é você quem faz as estratégias do jogo?

Rainha (escrevendo):
Que isso! Claro que não...

Rei:
Exijo que me diga: quem é que as faz?

A Rainha termina de escrever a mensagem e dobra. Olha para os lados a espera de um Peão.

Rainha:
Agora só precisamos que passe um Peão por aqui e leve esse bilhete a Sua Eminência.

Rei:
É o Bispo?

A Rainha olha fixamente para o Rei.

Rainha:
Nenhum de nós faz as estratégias para o jogo. Nós apenas cumprimos nossas tarefas. A minha, agora, é de fortalecer os ânimos de quem luta por nós. E a sua tarefa é mudar de lugar. E estará cumprida para o bem de todos nós.

A luz escurece.

Cena 2


O Rei está no canto do palco deitado. A Rainha está no mesmo lugar que na cena anterior. De pé, ela lê o livro que o Rei lia.

Rei:
O livro é mesmo bom?

Rainha:
Preciso lhe dizer que não estou achando... Mas ler é bom porque faz o tempo passar mais rápido. E meu nome não está sendo pronunciado e eu não estou fazendo nada a não ser ler. Ler não leva a vida adiante, por isso não nos envelhece.

Rei:
Ler leva nossos pensamentos adiante. Torna-nos maiores do que realmente somos. Pelo menos nos faz sentir assim...

Rainha:
Sua Majestade me tira a atenção.

Rei:
Pois eu li páginas inteiras ouvindo sua voz, falando comigo, com os Bispos, com o Cavalo e os Peões...

Rainha(fechando o livro):
Nem me fale do Cavalo... Foi uma perda e tanto!!

Rei:
Mas ele, ao menos, derrotou os dois Cavalos inimigos. Fez sua obrigação! Jogou o jogo para o qual veio.

Rainha:
Um animal valoroso! Merecia uma medalha.

Rei (ri):
E de que adiantaria uma medalha? Já está mesmo fora do jogo... Deveríamos fazer então uma estátua. Grande. Larga. Serviria para nos esconder quando o inimigo estivesse perto. O Cavalo seria útil de novo, mesmo morto.

Rainha:
Sua memória continua viva entre nós.

Rei:
Coloquemos então essa memória para lutar a nosso favor. Ela é bom soldado?

Rainha:
Sua memória é para nós um exemplo. Sim! A memória desse exemplo é bom soldado.

Rei:
Ele foi outro que matou para não ser morto. Todos nós fazemos isso aqui. Nossa vida consiste em matar para não morrer.

Rainha:
Pelo que eu me lembro, foram eles é quem começaram.

Rei:
Golpe de sorte deles. Vê porque eu acho o futuro um absurdo? Sorte...

Rainha:
Sorte? Não sei... Talvez, azar... Se perderem, sofrerão a sorte.

Rei:
E você, quem quer dar uma medalha ao Cavalo morto, fala de sofrimento pela derrota... Deveria escrever romances. Cria ótimas situações!! O Cavalo foi um derrotado... Não consegue ver?

Rainha:
Qual nada! Ele morreu numa luta heróica!

Rei (finge que toca uma corneta, ri, encenando a morte do Cavalo):
E o bravo Cavalo cai por terra e, com ele, todas as esperanças de um Reino de Paz e Felicidade para Todos! (para a Rainha) Você está distorcendo, alienando os fatos.

Rainha:
A guerra é muito mais do que isso que você mostra entender.

Rei:
Se a vida não for uma guerra, sou um péssimo Rei. Sou um péssimo Rei. É isso que quer dizer? Pois diga!

Rainha:
Jamais diria isso ao meu Rei.

Rei:
Diga quantas vezes quiser... Que mal poderei eu fazer a você?

Rainha:
Uma Rainha não deve dizer esse tipo de coisa. Mas diga o que quiser, Majestade. Farei ouvidos de cano!

Rei:
Pensa que eu vim pra cá porque quis?

Rainha:
Seja pelo que foi, você nos salva. E é preciso proteger o Rei.

Rei:
Nos salva... Em que eu estou te protegendo? E de que forma eu viria pra cá? Minha querida, minha doce e épica Rainha, minhas pernas não caminham e eu sou apenas uma peça, um fantoche do jogo. Um jogo que eu não estou jogando. Logo terminará.

Rainha:
Suas pernas ainda doem? Pena não estar aí para cuidar de Sua Majestade.

Rei:
Sim... Deitei-me aqui por isso. E a batalha está longe. Ficar de pé ou sentado não faz diferença nenhuma para nós.

Rainha:
Como vai meu Bispo?

Rei:
Eu não te contei? Ele já não está mais perto de mim.

Rainha (preocupada):
Mas ainda tem vida?

Rei:
Pois foi quase pego pela Torre deles. Uma cena digna de um livro escrito por você. Talvez já tenha sido morto. Escute-me, onde estão teus tão fiéis informantes?

Rainha:
Temos poucos Peões agora. Você está certo. Logo nossa vida terminará. Dão-me dores só de pensar...

Rei:
Houve um tempo em que eu via o inimigo agindo contra nós. Já não os vejo. Talvez sejam menos que nós. Talvez não. Você não pode perder a esperança. Morrerá, sabia? Você que é tão sonhadora e me encanta bem mais que os livros que leio...

Rainha:
Bem melhor que os livros é acompanhar a guerra. Eu leio a realidade, mesmo que ela me machuque. Rainhas devem ser fortes!

Rei:
Desculpe, mas devo dizer que você lê aquilo que lhe convém da realidade. E enche de sensacionalismos baratos que dão muito ibope hoje em dia. (debochando) Quando você narra, não desgrudo meus olhos de você!

Rainha:
Eu interpreto os fatos que tenho em mãos. O Senhor...

Rei:
Me chama de Senhor?

Rainha (exita antes de dizer):
Você é que faz apenas o que lhe convém.

Rei:
Pois convém que eu fique de pé, ainda que eu não queira. Sou o Rei e me parece que aí vem o meu Bispo.

Rainha:
Pois finalmente age como um verdadeiro Imperador! Ouça bem o que lhe conta o Bispo e não me poupe das piores notícias. Em minha direção, aproxima-se também uma Torre inimiga.

A Rainha guarda o livro e mantém os olhos fixos no horizonte onde está a Torre inimiga. O Rei espera de pé, com olhar cansado, a vinda do Bispo.

Rainha:
Sua Eminência já lhe chegou? O que diz ele? Mal posso esperar por novidades!!

Rei:
Aquele velho parou novamente. Pobre homem... Também tem suas necessidades. Mas me irritam suas pausas no caminho!

Rainha:
Você está tão excitado...

Rei:
Não estou excitado pelas notícias que virão, mas me sinto diferente pelo fim que se aproxima.

Rainha:
Vejo que agora tens mais curiosidade pelo futuro do que pelo presente.

Rei:
Finalmente, em ti encontro razão! Pois eu não era assim. Tinha os pés bem fincados no chão e olhava com naturalidade os dias que, em minha frente, passavam. Talvez seja a convivência com você. As pessoas têm o poder de nos modificar, sabia? Pois vou tentar também! Olhe para mim. Mesmo que você me diga mil vezes que eu sou o Rei e que sou a peça mais importante desse jogo, não me vejo melhor que ninguém. Ao contrário, sinto-me agora o mais coitado. Serei o último a ver o que teremos após o fim.

Rainha:
Após seu fim, não teremos nada. Só choro. Mas após o fim do Rei inimigo, aí sim, creio eu, teremos grandes festas em nossa honra.

Rei:
Pois vejo agora porque estou ansioso. Quero logo ver essas festas! Já que não verei choro algum.

Rainha:
Veja! Tudo aqui convém a você. É o único que não verá a derrota, caso houver. Mas se... (vendo o horizonte) Nossa!

Rei:
A Torre inimiga se aproxima de ti?

Rainha:
Sim. E a um golpe poderá me atingir.

Rei:
Pois faça já alguma coisa! Não é possível ficar sem você.

Rainha:
Não fale assim. Não fica bem para um Rei! Acredite em mim, não quero sair do jogo, pois não vivi para isso, mas, se for preciso, pelo bem do nosso povo, assim será feito.

Rei:
Eu sou o Rei e não quero que isso aconteça. Ordeno que alguém faça isso por você. (grita) Que sacrifiquem a vida pela minha Rainha!

Rainha:
Não pode fazer isso! Tem que pensar em ti. E em nosso povo, nossa luta!

Rei:
Mas eu quero fazer! Como ousa questionar minhas ordens?

Rainha:
Pare, por favor! Suas ordens não são válidas. Não é você quem faz as jogadas.

Rei:
Que raio de Rei sou eu que não mando?

Rainha:
Meu amor, você apenas executa as ordens que lhe vêm.

Rei:
E me vêm de onde?

Rainha:
Você diz: “Que raio de Rei sou eu que não mando?”. Pois que raio de Rainha serei eu se não der minha vida por meu povo e por meu Rei.

Rei:
Ficarei triste sem você. Disse que eu não verei o choro nessa vida e que, pra mim, há a festa da vitória ou o nada. Como será minha vida aqui sem você? Com certeza será...

Silêncio. Os dois olham fixamente no horizonte. Tensão que culmina numa explosão de alegria.

Rei:
Salve!

Rainha:
Que coisa!! Honrada seja a Igreja!

Rei:
Nunca esperei que ele pudesse fazer isso por você!

Rainha:
Muito menos eu! Eu que não confiava nele... Quão ingrata eu fui...

Rei:
Mas é assim mesmo. A ajuda sempre vem de onde menos se espera.

Rainha:
Que jogada... Foi por pouco...

Rei:
Era ele ou você. E entre meu Bispo e você, prefiro você. Também agiu bem o Bispo.

Rainha:
Pois não deveria. Agora você está ainda mais fraco.

Rei:
Como eu poderia preferir meu Bispo? Iriam falar mal de um Rei que prefere a Igreja a sua esposa.

Rainha:
Na Inglaterra, houve um Rei que rompeu com o clero por causa de seu amor. Mas ela não era sua esposa. Era sua amante.

Rei:
O que importa é que você ainda está aqui. Preciso de alguém que me ouça. Onde está o ator se não há público? Pra quê paisagens em terra de cegos?

Rainha:
Preciso ir pra perto de você.

Rei:
Então venha! Darei uma medalha ao Bispo. E vou ser poético dessa vez. Mandarei colocar um tapete vermelho em sua honra.

Rainha:
Pelo mesmo motivo que não deu ao Cavalo, não dará ao Bispo. Não permitirei!

Rei:
Só agora eu vejo o quanto sua companhia me é importante.

Rainha:
Isso faz parte da gente. Damos sempre mais valor ao que não está mais conosco.

Rei:
Vem pra cá...

Rainha:
Quer, mas não posso.

Rei:
Já sei... Não é você quem faz as jogadas...

Rainha:
Não sou... Mas podemos pedir.

Rei:
Pedir? E pra quem? Você conhece o estrategista?

Rainha:
A realidade é quem faz as jogadas. As coisas acontecem segundo a realidade. As cores vêm para o quadro conforme a necessidade da gravura de ter determinada cor.

Rei:
Tenho necessidade de ter você aqui. Cortar-te-ei a cabeça se não vier!

Rainha:
Daqui a pouco, eu irei.

Rei:
Como sabe?

Rainha:
Meu Bispo está longe e outro acaba de sair do jogo. Não temos mais os Cavalos e as Torres. Quem nos protege senão nós mesmos? Resta-nos pouco.

Rei:
Nunca nos resta pouco. Ou nos resta tudo ou não nos resta nada.

Rainha:
Se eu não for pra perto de você, quem lhe protegerá? Logo virá algum inimigo pôr Sua Majestade em xeque.

Rei:
Enquanto eu estiver vivo, o jogo não acabou. Isso é nosso tudo.

Rainha:
Mas quanto mais protegido você estiver, mais tempo ficará vivo. Acho que o Bispo estava vindo para proteger você.

Rei:
Por isso, ele mereceria uma medalha.

Rainha:
Seu velho e bom egoísmo... O Cavalo foi tão útil para o nosso povo quanto o seu Bispo.

Rei:
Já disse! O Rei pode e deve ser egoísta. E o Bispo foi mais útil pra mim do que o Cavalo. O sentido da vida está na utilidade do ser.

Rainha:
Por que graças ao Bispo eu estou aqui?

Rei:
Sim... E preciso dizer isso agora antes que eu perca você.

Rainha:
Não há o que temer. Estaremos sempre juntos!

Rei:
Sempre? Estamos no fim do jogo. Palavra muito ampla...

Rainha:
Se você morrer, eu morro também. Isso é fato.

Rei:
Mas você pode morrer e eu permanecer vivo. Futuro insólito e besta o meu...

Rainha:
Meu Bispo me dizia que logo todos nos encontraremos. Você precisa acreditar nisso!

Rei:
Onde? Após o jogo? Não me venhas com isso... Por que diminui a poesia?

Rainha:
É preciso acreditar em alguma coisa! Eu prefiro acreditar na nossa vitória. E que eu estarei aqui com você quando derrotarmos o Rei Inimigo. Essa é a minha poesia.

Rei:
A poesia só é válida se for poesia e não for vida. Sua vida consiste em jogar cores na minha tela branca. E o que pra você é tão consistente, pra mim não passa de guache.

Rainha:
A vida precisa de uma ilusão. Vamos sentar e esperar minha ida pra perto de você.

Rei (sentando):
Minhas pernas doem de ficar em pé.

Rainha:
Logo estarei aí. Sinto o cheiro de mudanças no ar. Algo em breve acontecerá.

Rei:
Sua promessa não me faz sentir melhor.

Rainha:
Meu Bispo está vindo pra cá. Ele me dará notícias.

A luz escurece.

Cena 3

Apenas a Rainha está no palco. De pé, costura sua almofadinha. Está nervosa. Olha para o horizonte e para os lados a procura de notícias.

Rainha:
Uma vez me disseram que as coisas nunca estão paradas. Mesmo quando parecem estar, algo está acontecendo, só que não podemos ver. Gostaria... Quero que seja verdade. E tem que ser.

Borda. Olha para o seu trabalho, tentando se distrair. Não consegue.

Rainha:
Me disseram também que o sol está lindo lá fora.

Senta-se sem tirar o olho do horizonte.

Rainha:
E que a batalha... Será?? (levanta-se bruscamente)Ah! Estou farta do que me dizem os outros! De que adianta o sol brilhar se eu não tenho olhos para ver? E nem corpo para queimar! Feliz daquele que pode estar ao sol, vendo seus pêlos levantarem e mudarem de cor com o calor que sentimos. Que inutilidade estar aqui sem saber de nada, sem participar de nada. Não sou assim! Não consigo me acostumar com esse marasmo! Nem um Peão por aqui... Quisera eu ser um Peão. Grande coisa essa coroa! Não somos nada... Meu Rei estava certo. De que nos vale a vida? Meu Rei... Onde andará? Pois ordeno, exijo, quero que venha alguém agora aqui e me diga o que estamos fazendo. Sempre fui uma boa Rainha, sempre! Servi meu povo e nunca acumulei nada de errado no meu coração. Não tenho estômago para sentir fome, mas sinto sede de informação. Tudo o que acontece aqui tem algo a ver comigo. Não é possível que me deixem sozinha! Não é egoísmo da minha parte... É necessidade. Será que alguém pode me explicar para onde está indo a minha vida? Alguém de fora, porque eu, que estou aqui, já não entendo mais...

Silêncio.

Rainha:
Vim para cá para defender o meu povo. Meu Rei diria que vim para fugir da Rainha inimiga que se preparava para dar o bote. Ela, com três Peões atrás de si, e eu, completamente separada de todos. Meu Rei em xeque por uma Torre. Destruíram as nossas Torres e mandam uma nos destruir. Quem pensam que são? E por uma Torre? Por que não o próprio Rei? Eu, pelo menos, fui ameaçada por uma Rainha. E que bonita era ela... Acho que vir até mim foi um dos seus primeiros movimentos. E eu?? Ah... Já andei tanto por esse tabuleiro que conheço cada quadrado dessa guerra que chamamos de vida. Estou velha, vejo agora. Cansada... Queria estar ao lado do meu Rei e, com ele, esperar o golpe que nos levaria para um lugar novo, onde de novo seríamos novos.

Tira a coroa e se senta novamente.

Rainha (para dentro):
Alguém poderia me trazer um gole de chá com consciência, por favor? E um chá gelado porque o quente vai demorar muito pra eu poder engolir tudo. Bons tempos aqueles, quando, em início de jogo, tínhamos, o Rei e eu, todos a nossa volta. Tínhamos o prestígio, a nobreza. (ri) Nunca tratei mal ninguém. Jamais desejei mal para qualquer um aqui. E sempre, sempre senti a morte de todos os nossos soldados. Sou também um soldado. Luto por meu povo e por mim. Por que não tenho o direito de andar com meus companheiros e saber...

Levanta-se novamente.

Rainha:
Peão! Apresente-se e diga de uma vez o que está acontecendo com o meu Rei. E não me poupe das piores histórias, todas elas são novidades pra mim.

Tempo. O Peão não chega.

Rainha:
Se eu estou falando é porque ainda jogamos. Ele só pode não estar morto. Que tortura viver com essa realidade que sofre de ausência de realismo. Essa sobra de sarcacidade!

Tempo.

Rainha:
Aproxime-se, Peão, ou grite-me daí, onde está meu Rei?

Ouve reagindo com espanto. A luz escurece.

Cena 4

O Rei e a Rainha estão juntos, lado a lado. Os dois estão de pé, olhando para frente, onde acontece a batalha.

Rei:
O que sabe você sobre a hora do xeque?

Rainha:
Quem lê livros é você. Eu leio a batalha, lembra-se?

Rei:
E o que te diz a batalha? Sempre tem alguém que te diz algo sobre alguma coisa...

Rainha:
Sobre isso, não me disseram nada.

Rei:
A pior tortura é a consciência. Nada invade tanto a nossa cabeça como a consciência. Eu, durante toda a minha vida, sempre esperei por este momento e também os que estão prestes a chegar. E, agora que eles chegam,...

Rainha:
Você quer que eles não aconteçam... É normal, meu querido.

Rei:
Não seja tola. Está enganada! Pensa que estou com medo? Estou esperando que venha logo a morte.

Rainha:
Como é terrível a morte dos Reis! Sobre isso, eu já li e já ouvi muito.

Rei:
Não me conte o que tem lido ou ouvido. Fale sobre o quê você sabe.

Rainha:
O que sei é o que tenho lido e ouvido.

Rei:
O que você leu e ouviu é o que os outros sabem. O que você sabe é o que pensa sobre o que eles sabem.

Rainha:
A pior tortura não é morrer. É saber que vamos morrer.

Rei:
Tristeza em seus olhos? Oh... Fará agora um belo poema, um bonito quadro!

Rainha:
Queria que eu estivesse alegre? Eu não queria perder. E, se me fosse possível ainda acreditar que isso não aconteceria, diria em alto e bom som: ainda não quero perder!

Rei:
Você morreria igual!

Rainha:
Dizem que quem ganha volta a jogar.

Rei:
Só há dois povos aqui. Nós e eles. Sempre estaremos de novo na batalha. Eu e você sempre seremos Rei e Rainha. Volto a perceber a obviedade de tudo. A vida perde a graça quando sabemos muito sobre ela. Tudo perde a graça. A morte, talvez, então, more nessa perda da graça. Se eu te conheço já não me sobra muito interesse por você. Vejo que foi bom ficar boa parte desse jogo longe de ti minha Rainha...

Rainha:
Como você pode ser tão cruel consigo mesmo?

Rei:
Cruel comigo mesmo? Estou sendo gentil comigo. Eles é quem não estão sendo conosco. Mas os inimigos são também uns coitados...

Rainha:
Você já sabe o que vai acontecer, não sabe? Qual é a graça dessa tortura, então?

Rei:
Se tem uma coisa que gosto em você, é seu prazer em me colocar em xeque. Pois, minha Rainha, já estou em xeque pela Torre do inimigo. Não está vendo ela bem a nossa frente? Sim, já conheço a batalha e sei que nela vamos perder. Só o que não entendo é porque a demora disso tudo em terminar. Essa Torre está parada aí na frente e nada acontece. Pode haver coisa mais estranha? Não gosto disso... Ou melhor, isso me deixa muito constrangido, mesmo tendo graça! Meu único prazer como Rei é saber exatamente tudo e ter a impressão de que eu comando tudo. De que, embora não faça as estratégias, sou o melhor amigo, o confidente de quem as faz, entende?

Rainha:
Alienação: você está ficando louco! Não há ser algum jogando conosco. Não somos peças de um jogo como parece pensar.

Rei:
Isso é o que você sabe? Nunca esteve fora daqui para dizer isso. Você não lê e se baseia no que os outros dizem. É sentimental, romântica e idealista. Tem todos os predicados necessários para ser uma plebéia esquecível. Mas eu a amo.

Rainha:
Me assustas! Você fala como nunca falou. Então, vê as diferenças entre nós? Nós e os Peões?

Rei:
Você as vê?

Rainha:
Você nunca admitiu que elas existissem. Sempre sustentou o discurso da igualdade entre todos. E, agora, quando é posto em xeque e quer morrer heroicamente,...

Rei (rindo sonoramente):
Heroicamente? (finge tocar a corneta novamente) Você só pode estar ficando maluca! Ridículo! Não existe morte heróica. Isso é alienação! Morte é morte e vida é vida. Que mania de tentar melhorar a morte ou piorá-la e fazer o mesmo com a vida. De uma vez por todas, entenda que não existe meia vida, vida pior ou vida melhor. Vida é vida e pronto. Todos os peões levam uma vida como a nossa! Todos são ricos em alguma coisa e todos são pobres.

Rainha:
Os Peões morrem e o jogo continua. O Rei morre e é o fim. Todos, nesse projeto, viemos para um número xis de ações. Mas todos temos ações diferentes e nunca houve mal nenhum nessas diferenças. E veja o que Sua Majestade me diz: “Você tem todos os predicados para ser uma plebéia esquecível!”. Você disse isso. O que me dirá agora?

Rei:
Você está falando de jogo e diz que não somos peças. Do que afinal está falando?

Rainha:
Estou falando que vamos morrer. E eu gostaria que nossa morte fosse mais bela do que ficar aqui, parados, à sombra dessa Torre que logo cairá sobre nós.

Rei:
e Rainhas nunca morrem. Ficam para a história...

Rainha:
Quem está sendo poético e romântico agora?

Rei:
Estou dizendo isso só para pôr você de frente com você mesma, minha doce Rainha. Todos os nossos corpos apodrecerão, não importando o que somos. Concordo com você que há diferença entre nós, mas apenas no que fazemos aqui, nessa vida, ou nesse jogo... Nossos papéis são diferentes, uns são protagonistas, outros coadjuvantes e outros ainda figurantes. Mas todos somos o que somos: importantes para a batalha. Já disse que é só na utilidade que devemos nos concentrar. Quer poesia? “O brilho de nossos espíritos depende de quanto contribuímos para o brilho terrestre.” Se os Peões não forem bons, o Rei morre minutos depois. E se estamos vivos até agora é por causa deles. Lembra que foi meu Bispo quem te salvou?
Rainha:E, antes, o meu deu a vida por mim, quando estava a perigo com a outra Rainha.

Rei:
Imagino que deve pensar que morrer com heroísmo é isso, dar a vida pelo próximo...

Rainha:
E você não concorda?

Rei:
Nosso dever é viver. Mas podemos morrer estando vivos, basta não fazermos nada pela nossa sobrevivência. É certo que não decidimos por nós mesmos aqui e nada fazemos pela nossa própria vontade. No entanto, não nos custa gostar da nossa própria vida e vivê-la no presente, intensamente. Estar na luta pela vida consiste em defender a vida do próximo? Diga-me, pois, sem drama, como fazer isso? Respondo que só há um jeito de dar felicidade e vida aos outros: sendo feliz e vivendo. Se alguém morreu por você, Alteza, fez isso para defender a própria vida. A derrota está na morte e a morte também está na vida. Morremos aqui a cada morte de um Peão. E isso porque sabemos que a nossa se aproxima cada vez mais.

Rainha:
As estratégias são feitas pela situação. Mesmo se eu acreditasse que há alguém jogando conosco, com nossas vidas, esse alguém agiria segundo a necessidade. E a necessidade vem da realidade. E minhas ações vêm da realidade.

Rei:
E que realidade é essa que vivemos agora? Como você consegue medir o quanto vivemos o real e o quanto vivemos o imaginário? Por que ainda não morremos? Olhe para a Torre. Ainda está parada... Isso eu não entendo e não consigo ficar sem entender. Eu disse que a graça da vida se encontra no desafio do desconhecido. Anuncio agora que prefiro o tédio!

Rainha:
O teu racionalismo deixa você velho. Olhe para nós quando nos encontramos pela primeira vez.

A Rainha mostra a foto que tem no pingente do seu colar.

Rainha:
Você ainda não tinha cabelos brancos e rugas. E sua perna não doía.

Rei:
E ela dói muito. Não imaginas o quanto!

Rainha:
Suas dores vêm porque você não anda com elas. Você anda com a cabeça. Às vezes, tenho pena de você... Mas não se chateie com isso. Você é o Rei aqui! E será grande na sua dor. Ser grande é o que busco também. É o que todos buscamos aqui. Farei tudo o que for possível, ou melhor, em mim, a realidade fará tudo o que for necessário para o jogo continuar e a vida seguir. Quer ser grande como um Rei? Então, renda-se ao que deve ser feito.

Rei:
Minha morte está nas pernas que não andam. Pra quê então ainda as tenho? O Rei não pode mesmo caminhar e ele é o que menos anda pelo seu reino. O que menos pega sol. Vê como sou pobre? Nossas Torres viveram bem menos que eu, mas pegaram sol e viram os entardeceres.

Rainha:
Sendo poético de novo! Vai me dizer que está debochando de mim outra vez?

Rei:
Vai-te pra longe de mim que me corrompe o cérebro! Estou farto de sua voz!

Rainha:
Sou eu quem te faço isso ou tua própria imagem refletida nessa Torre Inimiga aí em frente?

A luz escurece.

Cena 5

O Rei está sozinho no palco. Chora.

Rei:
Pois eu não sabia que a covardia era tão amiga do estrategista. Que absurdo foi esse que a realidade fez conosco? O futuro é mesmo um absurdo e é até mesmo quando se torna presente. A vida era fácil quando vivíamos na lógica matemática de um jogo de xadrez... Obviedade. Estou vivo! E me alegro? Como posso eu me alegrar se a vida já não é vida e a morte está tão longe? Minhas pernas doem desse jogo não jogado, dessa vida não amada. Bonito castigo tive eu. Eu, o Rei! Bolas... A escuridão é nova pra mim, eu que pensei que nunca tinha visto a luz. Não sentia falta dela, é verdade... Mas agora vejo que estou tão nas trevas quanto as próprias trevas. Acaso eu serei o Rei das Trevas? Eu? Gostaria de ser um personagem de Shakespeare. Uma tragédia acaba quando os reis morrem. É bem possível que eu seja um. Serei eu isso que eu sinto? O que somos? Gostaria de ser o que sinto que sou. Agora, pois, já não seria mais nada. Nada...

Senta-se.

Rei:
Este fim é o que esperavam? Foi para isso que chegamos até aqui? Para ver o Rei sentar e chorar a morte de sua Rainha? Responda-me? Pois eu odeio todos vocês! Vão embora! Que se decrete o fim do jogo e o fim de tudo. Estou cansado dessa história mal escrita, pobre e tão distante das epopéias que eu costumava ouvir de minha Rainha. Um Rei que é Rei manda no seu reino. Eu não mando. Não pode haver Rei sem mandos. E eu não tenho nem mesmo a quem mandar. Todos os Peões já se foram. Todas as Torres, os Cavalos e os Bispos. Estou completamente só. Sem nem mesmo aquela que me fazia sentir solidão em meio à multidão. Por que mataram a Rainha e deixaram com que isso continuasse? Ela me fazia ser quem eu era. Era o meu mando, era quem pensava sobre meus pensamentos e chorava sobre meus sonhos. Por que fizeram isso com ela? Que raio de vida eu tenho agora?

Olha para o público com raiva.

Rei:
Pois ela estava errada. Somos mesmo peça de jogo. Não estão vendo que eu sou uma peça de jogo? E quem joga só pode ter feito tudo isso de propósito, armando esse golpe contra nós. (para o alto) Quer provar-se a si mesmo? Não é isso? Quer mostrar seu poder? Pois eu quero que o seu poder se volte contra você! Estou farto de você! Farto! Cansado. Estou aqui parado e você me fazendo de bobo. Mal jogador! Péssimo autor! Ridículo! Se valesse alguma coisa, teria, no mínimo, perguntado pra mim o que eu achava. Eu tenho opinião, sabia? Me achava conformado com tudo? Pois se enganou porque nunca fiquei satisfeito com a batalha besta em que nos colocou. Sou melhor Rei do que você seria... Eu acompanhei o jogo a vida inteira. Vi tudo o que aconteceu. E ninguém nunca me deixou fazer nada. Acaso pensa que estou me lamentando? Pois estou! Estou porque é nisso que consiste minha vida agora. E vou vivê-la até o fim. Até o meu fim. Eu acompanhei a vida, mas não a vivi. E ela escorregou pelas minhas mãos... Não! Não me diga que ainda a tenho porque eu me considero morto. Morto em vida, acredita? Contradição é o que digo? É sim... Bolas!! E assim será! De que me adiantou sentir tudo o que senti. De que resolveu ou ajudou saber de tudo? Nada. Nada. Não sou nada. Pra você, pelo menos. Pra mim, eu sou muito. Pois eu faço votos de que você também seja peça de um jogo e que haja alguém jogando com você. E deve haver... (ri) Tenho certeza que há. Corta-lhe a cabeça! Corta-lhe a cabeça!!

O Rei levanta-se com dores na perna. Surpreende-se ao ver o Rei Inimigo na sua frente.

Rei:
Ora, ora, ora... Veja só quem vem ao meu velório!? Então nos encontramos finalmente, Majestade! Foi para isso, então, que minha Rainha morreu? Pra que pudéssemos nos ver cara a cara? Você ficou aí parado esse tempo todo, ouvindo o que eu dizia completamente calado. Bela porcaria é você. Acha-se superior porque ainda tem o seu exército? (ri com deboche) Coitado! Saiba, meu querido, que todos morreremos. Todos. Eu não estou mais morto que você e você não está mais vivo que eu. Você é um nada tanto quando eu. Ser peça de jogo é algo que nos deixa longe de vida e de morte porque não vivemos o que queremos e não morremos quando achamos que poderíamos. E, se pensa que é mais feliz que eu, também está enganado. Ou talvez não esteja. Talvez por ter ainda sua esposa e seus amigos, seja menos infeliz que eu. Mas saiba, colega, que até que não estou tão infeliz quanto possa supor. Estou mais perto da vida, ainda que não a tenha, porque todos os que são meus estão mais vivos que eu. Eles estão na morte, pra onde eu já deveria ter ido. E lá estão porque se livraram do jogo e não são mais fantoches, como nós.

Pega o livro que está dentro de seu bolso.



Rei:
Dar-te-ia esse livro se tivesse outro que me fizesse passar o tempo por aqui enquanto nos fazem de palhaços. Mas não o tenho infelizmente. Mil desculpas. Pode se sentar e descansar. Vejo que ficaremos muito mais tempo por aqui do que pensamos.

O Rei lê como lia na cena inicial.

Rei:
Engraçado... Sabe que eu já gostei mais desse livro? Fala de um jogo inventado por um oficial grego chamado Palamedes. Na verdade, também dizem ter sido criado por um ministro hindu chamado Sissa que ficou muito rico por essa invenção que hoje conhecemos como Jogo de Xadrez. E, na época, o jogo fez muito sucesso por pregar a idéia de que o Rei só venceria com a ajuda de todos... Triste história. Esse livro agora me parece uma imensa bobagem. Bobo como tudo. Como nós. Completos incapazes diante de tudo. Mas não me lamento por isso, por essa situação. Não mais pelo menos. Minha Rainha uma vez me contou uma história de um rapaz que foi crucificado. Segundo a tal história, ressuscitou no terceiro dia. Talvez eu também ressuscite. O bom de se tirar zero numa prova é que abaixo disso você nunca ficará. E é assim, descansados como estamos, que ficaremos, somente à espera de algo... Algo que possa tocar nossas histórias pra frente e nos envelhecer ainda mais. Não é de dias que a vida é feita? E os dias não são feitos com beijos de príncipes? Já te contaram a história de uma menina que dormiu cem anos até que um príncipe a acordou com um beijo? Uma bela história... E outras... Também de um Rei que rompeu com a Igreja por causa de uma mulher que ele amava. E tem também aquela de um Bispo que deu a vida por sua Rainha... Foi bom você ter vindo até mim. Golpe de sorte... Como muitos na vida... Pelo menos conheci você antes de morrer. Um Rei como eu, para que ambos tenhamos o mesmo fim. Um fim que é igual ao de todos, de todos os nossos diferentes.

O Rei fecha o livro.

Rei:
Pensando bem, fique com esse livro. Já li bastante essas histórias e chegou a hora de ler a guerra. Você deu o último passo até aqui. E está na minha frente. Sua Majestade encontra-se na frente de um Rei solitário, sem Rainha, nem exército. Mas um Rei que tem a vez de jogar.

O Rei anda uma casa.

Rei:
Xeque-mate!